terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Desenvolvimento Humano: Entre o Ser e o Estar *

Mas é você que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem

(Belchior: Como nossos pais, 1976)


O "ser humano", em sua impermanência, é um "estar humano".

A palavra "humano", pode apontar para várias escalas ou ideias diferentes. Duas delas serão consideradas aqui. A primeira escala, ou ideia, de "humano" diz respeito ao humano como indivíduo, no que os "indivíduos humanos" têm em comum ou "universal", independente da etnia a que pertençam, e da cultura ou sociedade em que nascem, crescem e vivem. 

A segunda escala diz respeito à humanidade como um todo, à espécie humana e seus "universais", ou, mais frequentemente à(s) cultura(s) humana(s) e às civilizações que essas culturas construíram. Essa visão pode ser mais abrangente, no sentido antropológico, ou mais restrita, ao se considerarem visões etnocêntricas (mais frequentemente eurocêntricas) que tratam a civilização e a cultura ocidental, ou aquelas com o que se chamou de "desenvolvimento industrial", como as únicas "verdadeiramente civilizadas".  Como veremos mais adiante, não há motivo, ou sentido, para hierarquizações entre culturas, grupos sociais, etc.

Aqui, nossa abordagem será a mais abrangente possível, para incluir a humanidade em seus traços mais universais. Portanto, o termo "humano" será usado aqui de forma genérica para referência ao que há de universal no ser humano. Essa ideia de "universalidade humana" pode ser questionada sob diversos aspectos e isso constitui uma discussão válida e relevante, mas que foge ao escopo dessa discussão.

Ao falar de "desenvolvimento humano", é preciso, também, delimitar o que entendemos por "desenvolvimento" ou, "evolução". Não me parece razoável trabalhar com um conceitos de "desenvolvimento" e "evolução" que implique "progresso", "melhoria", ou que atribua algum senso de "propósito" para a existência da natureza, incluindo, aí, a existência humana. No sentido estritamente biológico não há "progresso" na evolução. Tomo aqui como referência a discussão feita por Araújo (1992). De fato, "evolução biológica" significa apenas "mudança das espécies ou populações ao longo do tempo" e, portanto, não há sentido em se atribuir juízos de valor a essas mudanças. O termo "desenvolvimento", conforme usado aqui, tampouco implica juízo de valor ou propósito. No sentido de evolução ou desenvolvimento social ou individual, por mais que gostemos ou tenhamos preferencia por alguns resultados desses processos de mudança em detrimento de outros, pode-se argumentar que essa preferência é resultado do próprio processo. Dessa forma, a própria preferência é resultado de uma visão parcial, não havendo um "melhor absoluto" a ser considerado como parâmetro. O desenvolvimento individual pode ter um caráter direcional, tornamo-nos mais velhos com o tempo, mas, novamente, dizer que nos tornamos "melhores" pressuporia um critério absoluto e arbitrário de "melhor". 

Para uma melhor fluidez do texto, quando a distinção entre as duas diferentes escalas do humano não for necessária, usarei "evolução" e "desenvolvimento" como termos equivalentes e de modo intercambável. Contudo, quando necessário para fins de distinção da escala de referência (humanidade x indivíduo humano), usarei "evolução" para me referir à humanidade (espécie ou sociedade) e "desenvolvimento" para a escala do indivíduo. Peço desculpas antecipadas por essa frouxidão no uso da linguagem. Sei que pode incomodar alguns leitores e espero que o restante do conteúdo faça valer o incômodo.

A espécie à qual pertencemos, nada modestamente autodenominada Homo sapiens sapiens (sim, duas vezes sapiens!) tem características únicas que a distinguem de outras espécies animais. Acerca disso, recomendo a discussão esclarecedora apresentada por Foley (1993). No mais, todas as espécies de seres vivos são únicas. É por isso que conseguimos distingui-las entre si. Mais importante do que hierarquizar qualquer relação entre espécies é conhecer as características da espécie que estamos estudando e compreender as consequências dessas características.

Ao examinar o humano por uma lente mais detalhada, percebemos que é preciso ir muito além do biológico para falar sobre seu desenvolvimento social, cultural, dos valores individuais e de grupo.

Uma das características mais marcantes do ser humano é a linguagem subjetiva e a capacidade de abstração. Esta, até onde conseguimos perceber, constitui atributo exclusivo de nossa espécie. A capacidade de abstrair e "subjetivar", inclui, dentre outras coisas, a percepção de um "eu" distinto do meio, neste incluídos os outros indivíduos. Isso possibilita o conceito de indivíduo e a percepção temporal, que permite lembrar do passado, avaliar diferentes "futuros possíveis", resultando na capacidade de escolher e planejar o futuro, tanto individualmente quanto de modo coletivo.

É essa percepção de temporalidade unidirecional, que permite a percepção de "presente, passado e futuro", que cria a possibilidade de percepção de mudança. Sem ela, tudo seria sempre percebido como sempre foi[1].

Além disso, é importante dizer que todas as nossas escolhas, projeções e conjecturas para o futuro são feitas no momento presente. O presente é dinâmico e é o único tempo do qual temos a percepção concreta, já que o passado é lembrança e o futuro é conjectura ou projeção. O presente, portanto, muda constantemente e, junto com ele, muda nossa percepção do passado (no mínimo, pela aquisição e acúmulo das memórias do "presente que já passou") e mudam nossas projeções para o futuro. 

Disso resulta não sermos seres acabados, prontos, nem como indivíduos, nem como grupo social, como cultura, ou mesmo como espécie. Além da evolução biológica que, não tendo uma direção nem um propósito pré-definidos, é permanente, temos a evolução da nossa "humanidade", dessa faculdade de "ser humano" que tampouco tem um destino definido. Contudo, podemos falar em características humanas que, de alguma forma, apontam para tendências gerais.

O desenvolvimento e a evolução do ser humano, tanto na escala individual quanto como grupo são, via de regra, mediadas por interações com o meio[2]. Dito de outra forma, o desenvolvimento da nossa sociedade se dá através de nossas interações individuais, das interações do indivíduo com o coletivo e de sociedades entre si. Da mesma forma, nosso próprio desenvolvimento individual se dá em meio a essas interações e é influenciado por elas.

O ser humano, em geral, busca maior conforto e melhores condições de subsistência para si e para os seus. Isso se traduz no desenvolvimento tecnológico que resulta em melhoria tanto para a qualidade de vida individual, infelizmente distribuída de modo tão desigual nas sociedades e entre sociedades, quanto em mudanças que resultam em maior produção de alimentos e bens de consumo. Idealmente, também se buscam melhores condições para a vida em sociedade, com maior igualdade entre os diferentes grupos que constituem a sociedade e menos discriminação social, racial, de gênero, etc.

Contudo, toda a mudança (ou manutenção do que está posto) resulta da interação de "pressões evolutivas"[3] diferentes. Aqui, para simplificar a exposição, agruparei, arbitrariamente, as pressões pela mudança consciente no ser humano e em seu meio social em dois grupos:

PRESSÕES PROGRESSISTAS - pressões que favorecem a mudança, incluindo, a criação e/ou a implementação de hábitos e soluções novas para substituir o que existe atualmente. Essas incluem a própria criação de ideias e soluções novas, atividade que o ser humano desenvolve praticamente o tempo todo.

PRESSÕES CONSERVADORAS - pressões que favorecem a manutenção de hábitos e soluções que existem atualmente. Essas pressões incluem a própria inércia da sociedade, já que a mudança (e até mesmo sua sua aceitação) exigem algum tipo de esforço e "custo de energia", seja no sentido físico ou emocional.

Enquanto pode ser tentador, de acordo com suas preferências e valores de cada um, classificar um desses grupos como "melhor" que o outro, é preciso considerar essas pressões de um modo mais abrangente. A primeira coisa a considerar é que a mente humana é criativa e o novo, tanto o "novo abstrato" (ideias e conceitos novos) quanto o "novo concreto" (novas tecnologias, produtos e procedimentos) sempre surge. Nesse sentido, pode-se dizer que o ser humano é, pelo menos nas ideias, muito afeito ao "novo". Por outro lado, nem todo o novo representa mudança desejável, na percepção dos indivíduos ou da sociedade. Como indivíduos, tendemos, por exemplo, a preferir novidades que facilitem nossa vida, reduzam nosso esforço, aumentem a produção do nosso trabalho, tragam ganhos em termos de conforto, saúde, longevidade, etc. Como sociedade, por exemplo, tendemos a preferir novidades que tornem nossas interações sociais imediatas menos agressivas, mais seguras e, em geral, mais amigáveis.

Por outro lado, tendemos a rejeitar novidades que representem perdas de conforto pessoal, aumento do esforço para realizar tarefas, ou que tornem nossas interações sociais mais agressivas e menos seguras.

A observação histórica nos mostra que toda sociedade humana está em constante mudança. Mesmo que, em alguns períodos, essa mudança seja tão lenta que não a percebamos, o exame em uma escala de tempo maior mostra que "a única certeza é a mudança". Essa mudança ocorre como resultado das interação entre as pressões "progressistas" e "conservadoras", que estão sempre presentes. Sem pressões a favor da mudança, a sociedade tenderia à estagnação e sucumbiria diante de problemas novos, como catástrofes naturais, estiagens, epidemias, etc. Por outro lado, sem pressões conservadoras, é provável que adotássemos todas as "novidades" de modo acrítico, abrindo mão das soluções eficientes e de valores e hábitos que temos e que ajudam a manter a própria vida em sociedade mais ou menos longe do colapso.

Da mesma forma, nenhum indivíduo é puramente progressista em todos os aspectos e nem completamente conservador e é comum observarmos, por exemplo, pessoas progressistas com relação à sociedade e conservadoras na escala pessoal ou o contrário. Há muitas dimensões em que um mesmo indivíduo pode ser "progressista" ou "conservador", como a dimensão política, econômica, de costumes, etc. O importante, aqui, é lembrara que o desenvolvimento individual é resultado da interação dessas pressões, internas e externas, individuais e coletivas, sobre o indivíduo.

Assim, a evolução do humano (nas diferentes escalas) tem um caráter dialético[4] resultante do embate entre a manutenção do que está (tese) e o novo (antítese). Algo novo surge, cria-se um embate entre as pressões progressistas a seu favor e as pressões conservadoras contra este novo. O resultado, independentemente da aceitação ou rejeição da proposta nova, é um novo ser humano, que já teve a experiência dessa nova proposta. Em alguns momentos, o novo é aceito e a mudança é mais perceptível, em outros, tudo se mantém como está (na superfície), até que outra novidade surge e é "posta a prova", mas, agora por um ser humano diferente do que havia antes da proposta anterior. A própria criatividade humana é influenciada pelo confronte constante entre ideias novas e "o que aí está posto".

Mesmo os momentos de aparente retrocesso trazem, em seu bojo, a semente da mudança, já que o verdadeiro retrocesso é uma impossibilidade, o ser humano não volta à condição anterior a um avanço (da mesma forma que, citando Heráclito, "o mesmo homem não volta a se banhar no mesmo rio"). As ideias novas, assim como os novos anseios, sempre surgem e cada avanço ou retrocesso constitui parte de um ponto de partida para sua superação.

Assim, podemos concluir que a humanidade está em constante evolução e que o desenvolvimento, no sentido geral que usamos aqui, é parte da constituição, do próprio ser do humano. Toda existência do humano é devir, e, portanto, somos nossa própria impermanência. Somos porque estamos.


Notas

1- É interessante perceber que nossa linguagem não permite exprimir, com facilidade, a ideia de um "sempre constante" em que não haja percepção de passado, presente e futuro, ou em que estes sejam sobrepostos. É possível que essa percepção constitua condição necessária para o estabelecimento da linguagem subjetiva e, no limite, até mesmo de qualquer linguagem. É difícil pensar em alguma forma comunicação ou mensagem para a qual o "passar unidirecional do tempo" não seja um pressuposto básico ou necessidade lógica.

2- O "meio", aqui, se refere tanto ao meio "natural" quanto ao meio "social". Na maioria dos casos, é difícil traçar uma divisão clara entre os dois "meios", mas é importante mencionar que interagimos simultaneamente nesses dois domínios sobrepostos e que essas interações têm consequências que se influenciam umas às outras. Como exemplo, a atual epidemia causada pelo vírus SARS-cov-2 (Covid-19) pode, a princípio, ser considerada como resultado da interação com o "meio natural", mas sua disseminação é claramente influenciada pelo meio social. A crise ambiental que enfrentamos é resultado de nossas interações sociais e, como sociedade, com o meio ambiente, ao mesmo tempo em que tem impactos profundos sobre nossa sociedade, que, por sua vez, influenciam o modo como lidamos com o meio ambiente.

3- Esse termo vem "de empréstimo" da biologia evolutiva e, aqui, representa quaisquer condições (ou "pressões") que favorecem ou desfavorecem a mudança (ou a manutenção de padrões de mudança) em diferentes direções.

4- "Dialética" é outro termo que tomo a liberdade de usar de modo "frouxo", nesse texto.


Referências

ARAUJO, A. M. 1992. Há progresso na evolução?. Acta Biológica Leopoldensia, São Leopoldo, RS, v. 14, n.2, p. 5-14.

FOLEY, R. 1993. Apenas Mais uma Espécie Única - Padrões da Ecologia Evolutiva Humana (trad. Cintia Fragoso, Heitor Ferreira e Hércules Menezes). Editora da Universidade de São Paulo (EdUSP).


-----------------------------------

* Uma versão anterior deste texto foi apresentado como trabalho para a disciplina  "Ética nas Organizações" do Curso de Ciência Política da Universidade de Uberaba (UNIUBE)

sábado, 28 de novembro de 2020

Uma brecha para a compreensão: entre o "ser" e o "não ser" da Filosofia *

A pergunta norteadora desse texto diz respeito à compreensão sobre o que é a Filosofia. Isso inclui, naturalmente, a compreensão do que a Filosofia não é. 

A simplicidade de qualquer questão muitas vezes esconde uma complexidade inimaginável para quem se debruça sobre ela pela primeira vez. Ao refletir a respeito, é fácil entender que a filosofia pode ser definida de tantas formas diferentes quantas forem as pessoas a tentar defini-la, conforme afirmam Santos e Aidar (2018). Por outro lado, pode-se questionar a necessidade de uma definição única e precisa (ou "definitiva') da Filosofia. 

(Dadas as características da linguagem humana, qualquer definição corre o risco de ser excessivamente limitante e cerceadora e, portanto, pouco útil para a compreensão do objeto que tenta definir. Em muitos casos, pode ser mais útil e relevante desenvolver uma compreensão do que algo é (e, portanto, também do que não é) do que restringi-lo em uma definição, ainda que essa compreensão por vezes pareça excessivamente fluida. Essa "fluidez da compreensão" permite que esta se adapte ao processo de amadurecimento da própria compreensão acerca daquilo que se define.)

No caso da Filosofia, isso vai ao encontro da afirmação dos mesmos autores (SANTOS e AIDAR, 2018, p. 13) de que "não há, por parte da Filosofia, a preocupação em construir respostas prontas; ela não é uma doutrina". Assim, uma compreensão passível de amadurecimento será, em si, mais "filosófica" do que uma definição fixa. O título atribuído a este texto é, portanto, um alusão a essa compreensão que, idealmente, passa por uma brecha entre o "ser"e o "não ser" da Filosofia.

Antes de prosseguir, cabe ressaltar que a própria prática de buscar compreender o que a Filosofia é, baseando-se na reflexão a respeito do tema, pode se constituir como uma atividade filosófica. A presente reflexão é, portanto, ao mesmo tempo, uma atividade teórica e prática.

Aqui, pretendo discorrer brevemente sobre três aspectos da Filosofia que podem servir como ponto de partida para a compreensão da natureza da Filosofia. Estes aspectos, apontados por Reale e Antiseri (2003, apud SANTOS e AIDAR, 2018) são: o conteúdo da Filosofia, o método da Filosofia e o objetivo da Filosofia. A breve discussão desses aspectos, a seguir, tem como base o texto de santos e Aidar (2018).

A Filosofia não se limita a um conteúdo delimitado e específico. Sua busca é por uma compreensão  a realidade completa, ou à "totalidade das coisas". Nenhum fato ou assunto está fora do alcance da Filosofia e, ao buscar uma compreensão completa, a Filosofia busca examinar a realidade em diferentes escalas, sem perder de vista a totalidade. A isso denominamos "visão holística".

O "fazer" da Filosofia está baseado no uso da razão, que deve ser "logicamente honesto" (ou, melhor dizendo, "intelectualmente honesto"), e deve, portanto, seguir a lógica em busca das causas e razões da realidade que busca compreender. A Filosofia, portanto, não se parte e nem faz uso de dogmas ou mitos em sua busca por compreensão da realidade. Esta é a diferença entre a compreensão filosófica e as explicações religiosas da realidade. A Filosofia, portanto, além de não ser uma doutrina, tampouco tem caráter religioso.

Por fim, o objetivo da Filosofia é conhecer e contemplar a verdade, buscar o saber como fim em si mesmo. Não há objetivo além disso, não há a tentativa de estabelecer ou impor doutrinas ou teorias e tampouco de resolver problemas práticos. Isso não significa que a Filosofia não se presta à solução de questões práticas, mas sim que este não é seu objetivo último.

Todos esses aspectos indicam que a Filosofia busca, acima de tudo, a verdade, uma compreensão completa da realidade. Essa busca, expressa dessa forma, implica também uma honestidade intelectual absoluta e também desapego ao ego ou orgulho, já que uma proposição só pode ser descartada através da lógica e sua validade independe da identidade da pessoas que apresentou a proposição.

Tendo em vista esses três aspectos, podemos concluir que a Filosofia não se presta a ser dividida em partes. Ela é a "mãe" (no sentido de ser o ponto de partida, a origem) de todas as áreas do conhecimento humano e, ao mesmo tempo, abrange o conhecimento de todas elas. A Filosofia vai além das áreas do conhecimento humano e pode também dedicar-se à crítica dessas mesmas áreas do conhecimento.
 

Referências

REALE, G.; ANTISERI, D.. História da Filosofia: filosofia pagã antiga. v.1. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003.

SANTOS, S.G.; AIDAR, A.M. O espanto filosófico. Cap. 1, in: Aidar, A.M. e Santos, S.G. Fundamentos de Filosofia e Sociologia. Universidade de Uberaba (Uniube) 2018.


-----------------------------------

* Uma versão anterior deste texto foi apresentado como trabalho para a disciplina  "Fundamentos de Filosofia e Sociologia" do Curso de Ciência Política da Universidade de Uberaba (UNIUBE)

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

"Throughput": Inglês, Informatiquês e as velocidades de padarias e computadores


Inglês é um idioma muito peculiar. Afora as exceções (como verbos irregulares, uso de proposições, etc) é uma língua bastante lógica e relativamente simples. Muitos vão discordar, claro. Lógica e simplicidade não tem que ser coisas óbvias, na maior parte das vezes, precisam ser encontradas e essa busca pela lógica e simplicidade pode ser demorada e trabalhosa.

Vejamos, por exemplo, a palavra "input". "Input" significa, numa tradução bastante livre:"entrada de insumos" ou, em alguns casos, apenas "insumos". Insumos são as matérias-primas necessárias para fazermos alguma coisa. Por exemplo, quais de que insumos são necessários para fazermos um pão? Claro, isso vai vai depender do tipo de pão que se vai fazer, mas em geral para fazer um pão, precisamos de água, farinha, sal, açúcar e fermento. Neste caso, os "insumos" são os ingredientes da receita. Para montar um carro, uma montadora usa as peças separadas e segue um roteiro específico, um plano de montagem. Os "insumos", então, são as peças. Para montar uma tabela dos jogos de um campeonato de futebol, precisamos de informações sobre quais times estão participando, como os jogos foram sorteados, quais jogos já aconteceram, quais seus resultados, etc. Os "insumos", neste caso, são as informações. Insumo, ou entrada, é o que entra num sistema, o que o alimenta de modo que ele produza um resultado, às vezes também chamado de "Saída". "Entrada” e “saída”, aqui, não se referem às portas ou caminhos de entrada e saída, como poderiam em outros contextos, mas sim àquilo que entra e que sai do sistema. Entram ingredientes, sai pão; entram peças, sai um carro; entram as informações necessárias e sai uma tabela dos jogos do campeonato.

A sequência de passos do processo pelo qual o sistema recebe um input e produz um output é o que chamamos de "algoritmo" de um sistema. Todo processo de produção de coisas concretas envolve "insumos" (ingredientes, peças, informações sobre o campeonato) e um "algoritmo" (roteiro de ação, o "como fazer", seja pão, um automóvel ou uma tabela do campeonato).

Se input representa os insumos, ou a "entrada", do sistema, output significa o resultado, o produto ou a "saída", do sistema. Essas duas palavras em inglês, input e output, são, cada uma, formadas por duas outras palavras em inglês, assim:

input = in + put


output = out + put

onde:

in significa "em", "dentro";

out significa "fora"; e

put é um verbo que pode ter muitos significados mas, aqui, pode ser traduzido como "colocar algo em algum lugar" ou "passar algo por algum lugar".

Assim, temos que input significa colocar (algo) dentro, inserir, ou antão aquilo é que inserido no sistema para que ele produza um resultado (nem sempre desejado). Input é tanto o ato de fornecer algo ao sistema quanto aquilo que é fornecido.

Output, por sua vez, significa colocar (algo) para fora, ou aquilo que produzido e posto para fora do sistema, o resultado da ação do sistema sobre o input. Alguns talvez prefiram dizer que output é o resultado da interação do sistema com o input, o que, para os fins deste texto, dá quase na mesma.

Até aqui, tudo muito simples,até quem estudou o verbo "to be" durante tantos anos na escola já sabia disso tudo. Talvez não fosse capaz de explicar com clareza, mas entendia os significados de input e output.

Mas, e a expressão throughput?

Through significa, bastante literalmente, "através", em alguns casos pode significar "por intermédio de". E agora?

vamos tentar o mesmo que fizemos antes.

throughput
= through + put

"Colocar através?"

"Atravessar" algo pelo sistema?

Não tão literalmente, claro, mas bem próximo disso. Throughput significa, a passagem de algo pelo sistema, o tempo entre o momento que os ingredientes (input) entram no processo de fazer pão (sistema) e o momento em que o pão (output) sai do sistema. Mais especificamente, throughput significa a velocidade do processo em que o sistema produz um output a partir de um input. Em uma padaria, seria a velocidade em que se produzem pães, a partir dos ingredientes, supondo que o estoque destes seja bem grande, quantos pães são produzidos por hora? Numa montadora de carros, o throughput seria a medida de quantos carros são produzidos por unidade de tempo, digamos, carros por  semana ou por mês. Podemos chamar essas velocidades de "taxa de produção" (de pães ou de carros. Uma “taxa de produção” também poderia ser medida pra a produção de tabelas dos jogos do campeonato mas, neste caso, como a tabela provavelmente será feita uma única vez (mesmo que, depois, façamos várias cópias, a elaboração da tabela está terminada) é mais interessante falar em “tempo de produção” de uma tabela. Um detalhe importante de lembrar é que, a taxa (ou velocidade) de um processo é inversamente proporcional ao tempo que o processo demora. Assim, quanto maior o tempo de um processo, menos sua velocidade.

Em informatiquês brasileiro (um idioma esquisito que mistura português e inglês e é falado por gente esquisita que em geral gosta de ficção científica e toma muito café) throughput pode ser traduzido como "taxa de transferência", “velocidade de processamento”, ou “velocidade de comunicação”. Por exemplo, o tempo entre um comando dado ao computador, digamos, "abra meu navegador de internet" e a janela do navegador estar aberta na tela do computador depende de uma série de transferências de dados. Primeiro, temos a velocidade de digitação do comando, que representa o tempo entre o usuário decidir enviar o comando e inseri-lo corretamente através do teclado. Depois, temos a velocidade com o comando inserido é transferido à CPU. Depois, há uma série de operações complexas entre a memória e o processador. A memória RAM recebe os dados do comando a uma velocidade de entrada (tempo necessário para que cada bit seja lido e gravado na memória) e enviada ao processador a uma velocidade de saída (tempo necessário para que cada bit seja lido na memória e enviado ao processador), temos a velocidade de transmissão dos dados entre a memória e o processador, depois o tempo de processamento, depois o tempo de envio de volta à memória, etc, até que são enviados à tela do computador, onde você vê a janela do navegador na sua frente (e, ao mesmo tempo, tem o navegador disponível para acessar as páginas que quiser). Cada passo deste processo ocorre a velocidades diferentes. Cada passo do processo pode ter uma velocidades diferente, relacionada ao componente do sistema sendo utilizado. Os dados "passam" ou "fluem" através de partes diferentes do sistema, a taxas (ou velocidades) específicas para cada passagem.

Da mesma forma que teríamos pães por hora, no caso de medirmos a taxa de produção de uma padaria, ou carros por semana como medida da taxa de produção de automóveis, a velocidade de processamento ou taxa de transferência (throughput) de um sistema computacional é uma medida de quantas unidades de informação podem ser processadas em um dado intervalo de tempo e suas unidades de medida são bits por segundo (bps, ou Kbps, Mbps, etc) ou Bytes por segundo (Bps, KBps, Mbps, etc).

Gargalos de velocidade


Teoricamente, é possível medir a velocidade de cada componente de em um computador ou sistema de computadores. Cada componente terá sua velocidade própria, já que não todos iguais e desempenham tarefas diferentes. Também se pode medir a velocidade dos sistema como um todo. O tempo total de processamento de um sistema será a soma dos tempos parciais de processamento de cada parte (ou componente) do sistema. Assim, não é difícil concluir que a velocidade total máxima de qualquer sistema será sempre limitada pelos componentes mais lentos. Tarefas de execução mais lenta em um processo complexo limitarão a velocidade do processo. Por exemplo, em uma padaria, podemos acelerar a preparação da massa, mas o tempo que esta demora para crescer (fermentar) e o tempo que os pães demoram a assar não pode ser reduzido além de um certo limite, sobe pena de estragar a massa e queimar o pão por for a, mantendo-o cru por dentro. Componentes que reduzem a velocidade do sistema através deste tipo de mecanismo são chamados de gargalos (bottlenecks, em inglês). Da mesma forma que o gargalo de uma garrafa reduz a vazão de líquido para dentro e para fora da garrafa, gargalos em sistemas de computador reduzem a velocidade total do sistema, mesmo que a velocidade dos outros componentes seja muito mais alta.

É por isso que o ganho em velocidade de processamento com um processador muito rápido pode ser pequeno se, por exemplo, as velocidades de leitura e escrita dos elementos da memória forem baixas. Para evitar isso, alguns processadores mais rápidos vêm acompanhados de unidades de memória de capacidade relativamente pequena, mas com velocidades muito altas, chamadas memórias cache, que agilizam o processamento total. Da mesma forma, a velocidade de acesso a dados em uma rede de computadores ou da internet dependerá da velocidade de processamento do computador (levando em conta a quantidade de recursos disponíveis no sistema) e da velocidade da conexão (transmissão e recepção de dados) com rede. No limite máximo de velocidade dos componentes, a velocidade do sistema não será limitada pela velocidade de cada componente do sistema, mas pela taxa de transferência entre componentes do sistema. No caso dos computadores pessoais, está será a velocidade com que os dados passam pelos “fios” impressos na placa-mãe, em sua transmissão entre um componente e outro.

Gargalos precisam ser levados em conta, por exemplo, na hora de escolher os componentes para montar ou fazer upgrade em um computador, estruturar uma rede de computadores, entre outras coisas.

Este raciocínio pode ser estendido para qualquer sistema, desde a implementação de uma montadora de automóveis até uma padaria ou o sistema de trânsito de uma cidade. Muitas vezes, o ganho em eficiência pode ser maior quando se investe em melhorar o sistema nos gargalos do que quando se investe diretamente nas partes do sistema que já são muito eficientes.


Material de referência para termos técnicos, jargão de informática, etc, em inglês e português:

Computer Hope: Auxílio e informações gratuitos sobre computadores. (Computer Hope: Free computer help and information): http://www.computerhope.com/jargon.htm

Página de terminologia da IBM (IBM Terminology Page):  https://www-01.ibm.com/software/globalization/terminology/

Pagina de glossário do WhatIs.com: http://whatis.techtarget.com/glossary/Computing-Fundamentals

em português:
Dicionário técnico do Guia do Hardware: http://www.hardware.com.br/termos/ 


---------------------------------------------
Minha gratidão a todos que leram versões aneriores deste texto a contribuíram com críticas, siugestões, etc.


Última revisão, 05.jun.2016

domingo, 24 de junho de 2007

O TCC e Você *


Decidir o tema do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e como elaborá-lo pode ser bem difícil e pode gerar alguma angústia, especialmente se a cobrança for maior que os esclarecimentos fornecidos. Há quem pense em desistir do curso no final, ou encare o TCC como um Transtorno de Conclusão de Curso. Mas não é preciso deixar a coisa atingir níveis tão dramáticos. As dicas a seguir foram elaboradas para alunos de Ciências Biológicas, mas com um pouco de criatividade, cada um pode achar as equivalências para sua própria área de conhecimento.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que Trabalho de Conclusão de Curso é só isto mesmo. Um trabalho que você faz como pré-requisito para concluir o curso. Se ficar legal, e se você quiser, pode até dar origem a uma publicação fora da Universidade. Publicando-o ou não, você se forma e decide o que vai fazer depois de formado. Não há nenhum compromisso de ficar na mesma área de pesquisa ou de trabalho depois de formado. Não é um compromisso para o resto dos seus dias com aquele tema, não é nada como escolha profissional ou casamento. 
Por outro lado, o TCC determina sua vida num prazo mais curto. Isso de duas formas. A primeira diz respeito ao trabalho em si: você prefere fazer trabalho de campo ou de laboratório? Você tem tempo e disponibilidade para fazer coletas de campo? O assunto interessa o suficiente ou vai ser um sofrimento ter que ler tudo que encontrar a respeito? Todas estas questões devem ser levadas em consideração, porque, em breve, você vai ter que ler tudo que encontrar sobre o assunto do seu TCC. Pode acreditar, um assunto interessante acaba ficando chato e um assunto que já começou chato fica insuportável depois de um tempo. Você descobre que muita gente escreveu coisas aparentemente sem sentido (pelo menos para você) e, pior, vai ter que citar nestas "bobagens" na revisão bibliográfica. Por outro lado, descobre que muitas coisas se repetem e acaba tendo que ler muitos trabalhos dizendo a mesma coisa. Mas é necessário ler, mesmo que "por cima", porque pode haver alguma novidade em algum deles. Ou seja, o que você lê pode não fazer diferença nenhuma, mas o que você não leu pode fazer a maior falta. Sim, é a lei de Murphy aplicada ao trabalho acadêmico. 
A segunda forma com que o TCC pode influenciar sua vida é a seguinte: suponhamos que você escolha um projeto de execução muito difícil, ou que dependa muito de fatores externos, como clima etc. Bom, independentemente de qualquer destas coisas, se o TCC não for concluído, você não se forma. Já vi dissertações de mestrado perdidas por causa de incêndios ou cortes na floresta e outros tipos de “catástrofes naturais e artificiais”. Claro que num TCC a chance de acontecer algo do tipo é menor, já que a duração do projeto deve ser mais curta. Mas pense em um projeto que você consegue imaginar concluído, incluindo todos os passos do trabalho. Ao escolher um tema, procure trabalhos a respeito do assunto e comece a pensar em como você faria o seu projeto. Tente imaginar as dificuldades, problemas, etc. Na dúvida entre dois projetos, é melhor escolher o mais simples (geralmente mais viável). Antes de decidir, pesquise sobre as áreas de conhecimento que parecem mais interessantes. Converse com os professores, sempre com mais de um, eles podem ter dicas e abordagens diferentes. Pergunte sobre tópicos que lhe interessam, leia sobre as diferentes áreas da genética, ecologia, zoologia, botânica, etc. 
Veja as possibilidades de trabalho, assim você vai ter mais subsídios para fazer sua escolha. Lembre-se que muitos projetos podem ser desenvolvidos em mais de uma área. Por exemplo, um projeto sobre dispersão de sementes de figueiras pode ser desenvolvido na botânica (do ponto de vista da planta), na Zoologia, com o estudo do morcego que dispersa as sementes, ou na ecologia (interações ecológicas). Portanto, eleger uma pergunta pode ser inicialmente mais importante que escolher a área ou o orientador. Se você tem a idéia de fazer algum trabalho "ao ar livre" (como em Botânica, Zoologia, Ecologia, algumas áreas da Genética, etc.), comece a prestar atenção em parques, na rua mesmo, no seu quintal, em terrenos baldios... Sempre aparecem perguntas interessantes. Além disso, você começará a exercitar a sua capacidade de observação. 
Se a intenção é fazer um trabalho de laboratório, veja as possibilidades que a sua faculdade oferece, e se há outros locais onde os experimentos podem ser desenvolvidos. Só escolha um projeto definitivo quando tiver certeza que vai poder realizá-lo. Isto depende de você, mas depende mais ainda de coisas sobre as quais você pode não ter nenhum controle, como a disponibilidade de reagentes, materiais, espaço e equipamentos. Comece a freqüentar bibliotecas, de universidades e instituições de pesquisa. Na cidade de São Paulo, entre outras, há a Bireme, as bibliotecas da USP, do Instituto Butantan, etc. 
Aprenda a fazer pesquisas de bibliografia pela internet e a procurar as revistas e livros nas estantes. Não é sempre tão óbvio quanto parece. Tome consciência de que você não vai fazer seu TCC apenas com dados e artigos retirados da internet, de jornais ou revistas sobre ciência (como a Superinteressante). É importante familiarizar-se com publicações técnicas e científicas. A maioria destas está em inglês, o que não é motivo para desistir. Inglês técnico é bem fácil e você vai se descobrir lendo com alguma fluência depois de demorar para ler alguns trabalhos.
Se a intenção é fazer um trabalho de revisão bibliográfica, você deve prestar atenção particular ao parágrafo anterior, mas também deve procurar conhecer "ao vivo" o tema que vai estudar. Pense em como você faria um trabalho prático a respeito, por exemplo. Vá ao Zoológico, Jardim Botânico, observe os organismos envolvidos no seu estudo. Você vai entender melhor por que os trabalhos que você leu foram feitos daquela forma, vai ter idéias de trabalhos futuros e vai poder melhorar a qualidade de seu trabalho atual. 
É sempre bom lembrar que uma das principais finalidades do TCC é aprender a elaborar e escrever um trabalho próprio de pesquisa. Este trabalho (apesar de trabalhoso, perdão pelo pleonasmo!) não deve causar sofrimento. Portanto, procure um tema de estudo que você terá prazer em desenvolver e concluir, algo cuja resposta você ache importante, seja para resolver um problema prático, seja para avançar um pouco no conhecimento, ou disponibilizar material para pesquisadores e colegas que vierem depois de você. O ideal é que seja algo que você queira muito saber. 
Enfim, o mais importante é que o TCC não seja uma fonte de sofrimento e angústia, mas de aprendizado e crescimento. Todo processo de crescimento é doloroso, mas a dor pode ser aquela de músculo sendo trabalhado, como em uma aula de alongamento, uma dor que passa aos poucos e deixa uma sensação de alívio e leveza. Ou pode ser como uma enxaqueca. No seu lugar, eu escolheria o alongamento.

________________________ 
*Este texto foi adaptado de uma lista de sugestões que escrevi, há tempos, para alguns alunos preocupados com o Tabalho de Conclusão de Curso.