Mas é você que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem
(Belchior: Como nossos pais, 1976)
O "ser humano", em sua impermanência, é um "estar humano".
A palavra "humano", pode apontar para várias escalas ou ideias diferentes. Duas delas serão consideradas aqui. A primeira escala, ou ideia, de "humano" diz respeito ao humano como indivíduo, no que os "indivíduos humanos" têm em comum ou "universal", independente da etnia a que pertençam, e da cultura ou sociedade em que nascem, crescem e vivem.
A segunda escala diz respeito à humanidade como um todo, à espécie humana e seus "universais", ou, mais frequentemente à(s) cultura(s) humana(s) e às civilizações que essas culturas construíram. Essa visão pode ser mais abrangente, no sentido antropológico, ou mais restrita, ao se considerarem visões etnocêntricas (mais frequentemente eurocêntricas) que tratam a civilização e a cultura ocidental, ou aquelas com o que se chamou de "desenvolvimento industrial", como as únicas "verdadeiramente civilizadas". Como veremos mais adiante, não há motivo, ou sentido, para hierarquizações entre culturas, grupos sociais, etc.
Aqui, nossa abordagem será a mais abrangente possível, para incluir a humanidade em seus traços mais universais. Portanto, o termo "humano" será usado aqui de forma genérica para referência ao que há de universal no ser humano. Essa ideia de "universalidade humana" pode ser questionada sob diversos aspectos e isso constitui uma discussão válida e relevante, mas que foge ao escopo dessa discussão.
Ao falar de "desenvolvimento humano", é preciso, também, delimitar o que entendemos por "desenvolvimento" ou, "evolução". Não me parece razoável trabalhar com um conceitos de "desenvolvimento" e "evolução" que implique "progresso", "melhoria", ou que atribua algum senso de "propósito" para a existência da natureza, incluindo, aí, a existência humana. No sentido estritamente biológico não há "progresso" na evolução. Tomo aqui como referência a discussão feita por Araújo (1992). De fato, "evolução biológica" significa apenas "mudança das espécies ou populações ao longo do tempo" e, portanto, não há sentido em se atribuir juízos de valor a essas mudanças. O termo "desenvolvimento", conforme usado aqui, tampouco implica juízo de valor ou propósito. No sentido de evolução ou desenvolvimento social ou individual, por mais que gostemos ou tenhamos preferencia por alguns resultados desses processos de mudança em detrimento de outros, pode-se argumentar que essa preferência é resultado do próprio processo. Dessa forma, a própria preferência é resultado de uma visão parcial, não havendo um "melhor absoluto" a ser considerado como parâmetro. O desenvolvimento individual pode ter um caráter direcional, tornamo-nos mais velhos com o tempo, mas, novamente, dizer que nos tornamos "melhores" pressuporia um critério absoluto e arbitrário de "melhor".
Para uma melhor fluidez do texto, quando a distinção entre as duas diferentes escalas do humano não for necessária, usarei "evolução" e "desenvolvimento" como termos equivalentes e de modo intercambável. Contudo, quando necessário para fins de distinção da escala de referência (humanidade x indivíduo humano), usarei "evolução" para me referir à humanidade (espécie ou sociedade) e "desenvolvimento" para a escala do indivíduo. Peço desculpas antecipadas por essa frouxidão no uso da linguagem. Sei que pode incomodar alguns leitores e espero que o restante do conteúdo faça valer o incômodo.
A espécie à qual pertencemos, nada modestamente autodenominada Homo sapiens sapiens (sim, duas vezes sapiens!) tem características únicas que a distinguem de outras espécies animais. Acerca disso, recomendo a discussão esclarecedora apresentada por Foley (1993). No mais, todas as espécies de seres vivos são únicas. É por isso que conseguimos distingui-las entre si. Mais importante do que hierarquizar qualquer relação entre espécies é conhecer as características da espécie que estamos estudando e compreender as consequências dessas características.
Ao examinar o humano por uma lente mais detalhada, percebemos que é preciso ir muito além do biológico para falar sobre seu desenvolvimento social, cultural, dos valores individuais e de grupo.
Uma das características mais marcantes do ser humano é a linguagem subjetiva e a capacidade de abstração. Esta, até onde conseguimos perceber, constitui atributo exclusivo de nossa espécie. A capacidade de abstrair e "subjetivar", inclui, dentre outras coisas, a percepção de um "eu" distinto do meio, neste incluídos os outros indivíduos. Isso possibilita o conceito de indivíduo e a percepção temporal, que permite lembrar do passado, avaliar diferentes "futuros possíveis", resultando na capacidade de escolher e planejar o futuro, tanto individualmente quanto de modo coletivo.
É essa percepção de temporalidade unidirecional, que permite a percepção de "presente, passado e futuro", que cria a possibilidade de percepção de mudança. Sem ela, tudo seria sempre percebido como sempre foi[1].
Além disso, é importante dizer que todas as nossas escolhas, projeções e conjecturas para o futuro são feitas no momento presente. O presente é dinâmico e é o único tempo do qual temos a percepção concreta, já que o passado é lembrança e o futuro é conjectura ou projeção. O presente, portanto, muda constantemente e, junto com ele, muda nossa percepção do passado (no mínimo, pela aquisição e acúmulo das memórias do "presente que já passou") e mudam nossas projeções para o futuro.
Disso resulta não sermos seres acabados, prontos, nem como indivíduos, nem como grupo social, como cultura, ou mesmo como espécie. Além da evolução biológica que, não tendo uma direção nem um propósito pré-definidos, é permanente, temos a evolução da nossa "humanidade", dessa faculdade de "ser humano" que tampouco tem um destino definido. Contudo, podemos falar em características humanas que, de alguma forma, apontam para tendências gerais.
O desenvolvimento e a evolução do ser humano, tanto na escala individual quanto como grupo são, via de regra, mediadas por interações com o meio[2]. Dito de outra forma, o desenvolvimento da nossa sociedade se dá através de nossas interações individuais, das interações do indivíduo com o coletivo e de sociedades entre si. Da mesma forma, nosso próprio desenvolvimento individual se dá em meio a essas interações e é influenciado por elas.
O ser humano, em geral, busca maior conforto e melhores condições de subsistência para si e para os seus. Isso se traduz no desenvolvimento tecnológico que resulta em melhoria tanto para a qualidade de vida individual, infelizmente distribuída de modo tão desigual nas sociedades e entre sociedades, quanto em mudanças que resultam em maior produção de alimentos e bens de consumo. Idealmente, também se buscam melhores condições para a vida em sociedade, com maior igualdade entre os diferentes grupos que constituem a sociedade e menos discriminação social, racial, de gênero, etc.
Contudo, toda a mudança (ou manutenção do que está posto) resulta da interação de "pressões evolutivas"[3] diferentes. Aqui, para simplificar a exposição, agruparei, arbitrariamente, as pressões pela mudança consciente no ser humano e em seu meio social em dois grupos:
PRESSÕES PROGRESSISTAS - pressões que favorecem a mudança, incluindo, a criação e/ou a implementação de hábitos e soluções novas para substituir o que existe atualmente. Essas incluem a própria criação de ideias e soluções novas, atividade que o ser humano desenvolve praticamente o tempo todo.
PRESSÕES CONSERVADORAS - pressões que favorecem a manutenção de hábitos e soluções que existem atualmente. Essas pressões incluem a própria inércia da sociedade, já que a mudança (e até mesmo sua sua aceitação) exigem algum tipo de esforço e "custo de energia", seja no sentido físico ou emocional.
Enquanto pode ser tentador, de acordo com suas preferências e valores de cada um, classificar um desses grupos como "melhor" que o outro, é preciso considerar essas pressões de um modo mais abrangente. A primeira coisa a considerar é que a mente humana é criativa e o novo, tanto o "novo abstrato" (ideias e conceitos novos) quanto o "novo concreto" (novas tecnologias, produtos e procedimentos) sempre surge. Nesse sentido, pode-se dizer que o ser humano é, pelo menos nas ideias, muito afeito ao "novo". Por outro lado, nem todo o novo representa mudança desejável, na percepção dos indivíduos ou da sociedade. Como indivíduos, tendemos, por exemplo, a preferir novidades que facilitem nossa vida, reduzam nosso esforço, aumentem a produção do nosso trabalho, tragam ganhos em termos de conforto, saúde, longevidade, etc. Como sociedade, por exemplo, tendemos a preferir novidades que tornem nossas interações sociais imediatas menos agressivas, mais seguras e, em geral, mais amigáveis.
Por outro lado, tendemos a rejeitar novidades que representem perdas de conforto pessoal, aumento do esforço para realizar tarefas, ou que tornem nossas interações sociais mais agressivas e menos seguras.
A observação histórica nos mostra que toda sociedade humana está em constante mudança. Mesmo que, em alguns períodos, essa mudança seja tão lenta que não a percebamos, o exame em uma escala de tempo maior mostra que "a única certeza é a mudança". Essa mudança ocorre como resultado das interação entre as pressões "progressistas" e "conservadoras", que estão sempre presentes. Sem pressões a favor da mudança, a sociedade tenderia à estagnação e sucumbiria diante de problemas novos, como catástrofes naturais, estiagens, epidemias, etc. Por outro lado, sem pressões conservadoras, é provável que adotássemos todas as "novidades" de modo acrítico, abrindo mão das soluções eficientes e de valores e hábitos que temos e que ajudam a manter a própria vida em sociedade mais ou menos longe do colapso.
Da mesma forma, nenhum indivíduo é puramente progressista em todos os aspectos e nem completamente conservador e é comum observarmos, por exemplo, pessoas progressistas com relação à sociedade e conservadoras na escala pessoal ou o contrário. Há muitas dimensões em que um mesmo indivíduo pode ser "progressista" ou "conservador", como a dimensão política, econômica, de costumes, etc. O importante, aqui, é lembrara que o desenvolvimento individual é resultado da interação dessas pressões, internas e externas, individuais e coletivas, sobre o indivíduo.
Assim, a evolução do humano (nas diferentes escalas) tem um caráter dialético[4] resultante do embate entre a manutenção do que está (tese) e o novo (antítese). Algo novo surge, cria-se um embate entre as pressões progressistas a seu favor e as pressões conservadoras contra este novo. O resultado, independentemente da aceitação ou rejeição da proposta nova, é um novo ser humano, que já teve a experiência dessa nova proposta. Em alguns momentos, o novo é aceito e a mudança é mais perceptível, em outros, tudo se mantém como está (na superfície), até que outra novidade surge e é "posta a prova", mas, agora por um ser humano diferente do que havia antes da proposta anterior. A própria criatividade humana é influenciada pelo confronte constante entre ideias novas e "o que aí está posto".
Mesmo os momentos de aparente retrocesso trazem, em seu bojo, a semente da mudança, já que o verdadeiro retrocesso é uma impossibilidade, o ser humano não volta à condição anterior a um avanço (da mesma forma que, citando Heráclito, "o mesmo homem não volta a se banhar no mesmo rio"). As ideias novas, assim como os novos anseios, sempre surgem e cada avanço ou retrocesso constitui parte de um ponto de partida para sua superação.
Assim, podemos concluir que a humanidade está em constante evolução e que o desenvolvimento, no sentido geral que usamos aqui, é parte da constituição, do próprio ser do humano. Toda existência do humano é devir, e, portanto, somos nossa própria impermanência. Somos porque estamos.
Notas
1- É interessante perceber que nossa linguagem não permite exprimir, com facilidade, a ideia de um "sempre constante" em que não haja percepção de passado, presente e futuro, ou em que estes sejam sobrepostos. É possível que essa percepção constitua condição necessária para o estabelecimento da linguagem subjetiva e, no limite, até mesmo de qualquer linguagem. É difícil pensar em alguma forma comunicação ou mensagem para a qual o "passar unidirecional do tempo" não seja um pressuposto básico ou necessidade lógica.
2- O "meio", aqui, se refere tanto ao meio "natural" quanto ao meio "social". Na maioria dos casos, é difícil traçar uma divisão clara entre os dois "meios", mas é importante mencionar que interagimos simultaneamente nesses dois domínios sobrepostos e que essas interações têm consequências que se influenciam umas às outras. Como exemplo, a atual epidemia causada pelo vírus SARS-cov-2 (Covid-19) pode, a princípio, ser considerada como resultado da interação com o "meio natural", mas sua disseminação é claramente influenciada pelo meio social. A crise ambiental que enfrentamos é resultado de nossas interações sociais e, como sociedade, com o meio ambiente, ao mesmo tempo em que tem impactos profundos sobre nossa sociedade, que, por sua vez, influenciam o modo como lidamos com o meio ambiente.
3- Esse termo vem "de empréstimo" da biologia evolutiva e, aqui, representa quaisquer condições (ou "pressões") que favorecem ou desfavorecem a mudança (ou a manutenção de padrões de mudança) em diferentes direções.
4- "Dialética" é outro termo que tomo a liberdade de usar de modo "frouxo", nesse texto.
Referências
ARAUJO, A. M. 1992. Há progresso na evolução?. Acta Biológica Leopoldensia, São Leopoldo, RS, v. 14, n.2, p. 5-14.
FOLEY, R. 1993. Apenas Mais uma Espécie Única - Padrões da Ecologia Evolutiva Humana (trad. Cintia Fragoso, Heitor Ferreira e Hércules Menezes). Editora da Universidade de São Paulo (EdUSP).
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* Uma versão anterior deste texto foi apresentado como trabalho para a disciplina "Ética nas Organizações" do Curso de Ciência Política da Universidade de Uberaba (UNIUBE)